José Sidney Andrade dos Santos
Filósofo e Sociólogo
Em entrevista recente, o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, justificou a decisão monocrática que, na prática, alterou dispositivos da Lei do Impedimento (Lei nº 1.079/1950) com um argumento estarrecedor: a lei seria “de 1950”, estaria “caduca” e, portanto, poderia ser reescrita por ele próprio, sem necessidade de passar pelo Congresso Nacional.
A frase, dita com a naturalidade de quem está apenas atualizando um regulamento interno do STF, revela uma concepção autoritária e antidemocrática do papel do Poder Judiciário que merece repúdio veemente.
1. SÓ O CONGRESSO PODE REVOGAR OU ALTERAR LEI ORDINÁRIA
A Constituição de 1988 é cristalina: leis são revogadas ou modificadas por outras leis (art. 59, I). Não existe no ordenamento brasileiro a figura do “controle de convencionalidade” ou da “atualização interpretativa” que revoga tacitamente” capaz de autorizar um único ministro do STF a declarar extintos dispositivos de lei federal de 1950 porque ele, pessoalmente, acha que ela “caducou”.
Se a Lei do Impedimento está defasada, o caminho correto é o legislativo: apresentação de projeto de lei, debate nas comissões, votação em plenário nas duas Casas e sanção ou veto presidencial. Qualquer outra via é golpe contra a separação de poderes.
Gilmar Mendes sabe disso. Ele simplesmente escolheu ignorar.
2. O CRITÉRIO DA “CADUCIDADE POR ANTIGUIDADE” É SELETIVO E ARBITRÁRIO
Se o simples fato de uma lei ser de 1950 (ou mais antiga) a torna “caduca” e passível de ser reescrita por um ministro do STF, então o Brasil inteiro precisa ser reescrito da noite para o dia. Vejamos alguns exemplos de leis que continuam plenamente válidas apesar de muito mais antigas:
• Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/1916) – ainda em vigor em centenas de dispositivos
• Código Penal de 1940 (Decreto-Lei nº 2.848/1940) – base do direito penal brasileiro até hoje
• Código de Processo Penal de 1941 (Decreto-Lei nº 3.689/1941)
• Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942)
• Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941)
• Lei de Economia Popular de 1951 (Lei nº 1.521/1951)
• Lei de Segurança Nacional de 1983 (Lei nº 7.170/1983) – usada até 2021, mesmo sendo da ditadura
Nenhuma dessas leis foi declarada “caduca” por Gilmar Mendes. Por quê? Porque elas não incomodam o establishment político que o STF hoje protege.
O critério, portanto, não é a antiguidade. É a conveniência política do momento.
3. A MENSAGEM IMPLÍCITA: “EU DECIDO QUAIS LEIS VALEM E QUAIS NÃO VALEM”
Quando um ministro do STF diz que pode alterar uma lei de 1950 porque ela “caducou”, ele está dizendo, em outras palavras: “Eu, Gilmar Mendes, sou o soberano. O Congresso é secundário. A Constituição só vale quando eu quero.”
É a mesma lógica que levou o STF a inventar o “estado de coisas inconstitucional”, criar indultos humanitários ad hoc, reinterpretar a Constituição para permitir reeleições indefinidas nas Mesas do Congresso e suspender dispositivos da Lei de Improbidade sem qualquer mudança legislativa.
Tudo isso sem que ninguém tenha eleito Gilmar Mendes para nada.
4. O PRECEDENTE É DEVASTADOR
Se amanhã outro ministro resolver que o Código Penal de 1940 está “caduco” e passar a julgar homicídio como contravenção, quem vai impedir? Se a Lei das Licitações de 1993 for considerada “ultrapassada” e um ministro decidir que não precisa mais de licitação para obras públicas, quem vai dizer que não pode?
O critério da “caducidade por antiguidade” é a porta de entrada para o decisionismo puro: o Judiciário legislando a seu bel-prazer, sem freios e sem contrapesos.
CONVITE (IRÔNICO E GELADO) AO POVO
Aproveitem, caros brasileiros, enquanto ainda podem. O direito de manifestação popular também é “caduco”: vem da Constituição de 1988, aquela velharia de 37 anos. Daqui a pouco algum ministro acorda de mau humor, acha que o artigo 5º, inciso XVI, “envelheceu mal” e, num estalar de dedos monocrático, transforma reunião pública em “crime contra o Estado Democrático de Direito”.
Então, antes que o STF declare que gritar na rua é coisa de 1988 e que, em 2026, só vale sussurrar em casa, saiam às ruas. Levem cartazes, bandeiras, panelas – tudo que ainda não foi proibido por “atualização interpretativa”. Porque, como bem nos ensinou o decano, leis antigas só continuam valendo quando são úteis ao poder. As que atrapalham, viram pó com uma canetada.
Manifestem-se hoje. Amanhã pode ser tarde – e ilegal.
CONCLUSÃO
A declaração de Gilmar Mendes não foi um deslize. Foi uma confissão.
Confissão de que uma parte do STF já não se vê como intérprete da lei, mas como seu dono. Confissão de que a Constituição, para certos ministros, é apenas um conjunto de sugestões que podem ser ignoradas quando inconvenientes.
O Brasil não precisa de monarcas togados que reescrevem leis de 1950 porque “caducaram”. Precisa de juízes que respeitem a democracia, a separação de poderes e o processo legislativo.
Enquanto isso não acontecer, a República continuará refém de quem acha que o Supremo Tribunal Federal é, na verdade, o Supremo Legislador Nacional.
E isso, definitivamente, não estava na Constituição de 1988.
Aos congressistas do Brasil, um conselho: “Levantem as calças e parem de ser currados pelo STF”.
José Sidney Andrade dos Santos
Filósofo e Sociólogo
Dezembro de 2025











