Ao longo das últimas décadas, o crescimento das igrejas evangélicas no Brasil foi visto como um sinal de vitalidade religiosa e força espiritual. No entanto, o que deveria ser uma expansão do evangelho tem, em muitos casos, se convertido em um projeto de poder terreno. Cada vez mais lideranças evangélicas abandonam sua missão espiritual para se engajar diretamente na política partidária — e o altar tem se tornado, com frequência alarmante, uma extensão do palanque.
Os episódios envolvendo o líder evangélico Silas Malafaia, nos últimos dias na política nacional é o resultado de um sistema religioso Brasileiro ofuscado pelo sistema político, onde muitas lideranças religiosas perderam o interesse em conduzir um rebanho ao céu e passaram a conduzi-los tão somente para as urnas.
Hoje, em muitas igrejas, os fiéis já não são tratados como rebanho a ser cuidado, mas como capital político a ser mobilizado. Pastores que antes pregavam sobre fé, graça e salvação agora dedicam seus cultos a discursos políticos, incentivando — e muitas vezes exigindo — que seus membros votem em determinados candidatos ou partidos. A igreja deixa de ser casa de oração para se tornar um comitê eleitoral disfarçado.
Esse controle vai além das palavras. Relatos de diversas regiões do país denunciam ameaças veladas (e às vezes explícitas) a obreiros, músicos, professores de escola bíblica e até membros comuns. Aqueles que se recusam a seguir a cartilha política da liderança são frequentemente punidos com perda de cargos e funções eclesiásticas — como se a fidelidade ao evangelho tivesse se tornado secundária diante da fidelidade a uma pauta partidária.
No Brasil, na última eleição, foram eleitos 29 prefeitos com a nomenclatura “pastor” ou “pastora” antecedendo seu nome civil. Em Rondônia, lideranças evangélicas são decisivas em qualquer eleição, apoiando candidatos da sua base eclesiástica ou até se “auto-lançando”. Não à toa em Rondônia, temos vereadores pastores, suplente de senador, vices-prefeitos e outros cargos públicos por indicação.
O que há de errado? Na teoria, nada. Nem do ponto de vista político, nem religioso, porém, na prática, quem exerce a fé cristã autêntica, sabe o quanto isso fomenta discórdias na comunidade cristã em tempos de eleição.
O ensino bíblico também sofre. A fé, contaminada pela lógica da disputa eleitoral, é ensinada de forma distorcida. Textos bíblicos são frequentemente usados fora de contexto para justificar alianças políticas, ataques a opositores e até perseguições internas. Jesus é apresentado não como o Messias que serviu e morreu por todos, mas como símbolo de uma ideologia excludente e nacionalista.
Pior ainda são os acordos firmados nos bastidores. Em nome do crescimento institucional e da influência política, líderes evangélicos selam alianças com figuras públicas envolvidas em escândalos de corrupção, ou que defendem práticas abertamente contrárias aos princípios bíblicos — tudo em nome de “defender a família” ou “salvar a nação”. A hipocrisia institucionaliza-se: prega-se contra o pecado, mas abraça-se o poder, ainda que manchado.
Especialistas e teólogos alertam para os riscos desse desvio. “Estamos vendo o evangelho sendo sequestrado por interesses políticos. A missão da igreja é transformar corações, não manipular consciências”, afirma o sociólogo e pastor Paulo Nogueira, autor de estudos sobre religião e política no Brasil. Segundo ele, o crescimento político das igrejas tem custado caro: o evangelho pregado hoje é muitas vezes superficial, legalista e hostil, muito distante da mensagem de amor e graça ensinada por Jesus.
O cenário atual exige reflexão e coragem. A fé cristã, quando usada como ferramenta de poder, perde sua essência transformadora. E a igreja, quando se curva diante dos tronos terrenos, deixa de apontar para o único reino que realmente importa: o celestial.
O desafio é claro — e urgente: devolver à igreja sua vocação original. Resgatar o evangelho que consola, ensina e liberta, e não aquele que coage, domina e aliena. O cristianismo brasileiro precisa decidir se continuará caminhando rumo ao poder a qualquer custo, ou se voltará a ser o que sempre foi chamado a ser: luz do mundo e sal da terra.